The Dream

Não acreditava que aquilo estava mesmo acontecendo. Olhei a garota sentada a minha frente mais uma vez, apenas para confirmar se estava mesmo ali. Ah, sim, ela está mesmo e isso indica que tudo o que planejamos começava a dar certo. Sentia uma mistura de nervosismo e felicidade quase inexplicável. Apoiei meu queixo em uma de minhas mãos e apenas fiquei pensando em quão louco aquilo era.
Estávamos almoçando no restaurante do hotel perto da minha casa, o mesmo hotel que minha amiga passará apenas uma tarde. Talvez essa seja a tarde mais longa de nossas vidas. Depois dela, virá nossa partida. Finalmente começaremos viver nossas vidas. Esperamos mais do que o necessário para isso e quem diria que iríamos mais além do que almejávamos até alguns meses atrás.
Fiquei em dúvida se comia ou se falava mais. Mal havia tocado em meu prato. Na verdade, nem fome sentia. Creio que minha empolgação acabou com meu apetite. Isso não era de todo mal, embora necessitasse estar suficientemente forte à noite.
- Você vai comer essa cebola? – Mia perguntou apontando o garfo para o meu prato e fazendo-me prestar mais atenção em nosso almoço ao invés de pensar em qualquer outra situação.
- Vou – falei puxando meu prato. – Ninguém mandou comer a sua às pressas! – falei em tom de brincadeira, mas nunca que lhe daria minhas cebolas fritas.
- Sua gulosa! – Mia disse fazendo bico, parecia até criança, mas logo riu da situação.
- Eu nunca neguei minha gula – dei de ombros de uma forma despreocupada e ela sorriu.
- Ahm... Clara, você já arrumou suas coisas para essa viagem sem volta? – minha amiga perguntou com certo brilho no olhar e um sorriso ansioso nos lábios.
- Estou trabalhando nisso – comecei. – Toda vez que eu estava arrumando minha mala, alguém batia na porta. Mas, estou terminando, não se preocupe, aprontarei tudo bem a tempo – sorri contente, sentindo minhas mãos formigarem de ansiedade. – Olha só, a viagem é hoje a noite e nem a mala eu fiz – dei um tapa na testa. – Ah, minha identidade, chegou ontem, você acredita? Super em cima da hora – falei um pouco aborrecida.
- Só a sua?! – o tom de voz dela subiu consideravelmente, uma mulher na mesa ao lado até parou de comer para nos olhar.
- É, só a minha – sorri inclinando-me sobre a mesa. – A sua identidade falsa chegou na semana passada, junto com nossos passaportes. – Mia suspirou aliviada e retribuiu o sorriso. – Isso significa que nada nos impedirá de partir esta noite – soltei uma risada satisfeita.
- Assim eu fico bem mais tranqüila... – seus lábios se apertaram em um meio sorriso. – Sabe, nós esperamos tanto por isso e estar realizando é... Surreal! Eu tenho medo de acordar e ver que foi tudo um sonho – Mia disse lançando um olhar distante, com uma expressão vazia.
- Amiga, isso não é um sonho – falei esticando meu braço para pegar sua mão. – Iremos mesmo embora daqui! – sorri. – Daqui a poucas horas, estaremos dentro de um avião e nossas vidas começarão pra valer.
- Terá alguém nos esperando no aeroporto? – Mia perguntou franzindo o cenho.
- Sim – respondi contente. – Pensei em tudo, Mia! Assim que chegarmos à Alemanha, Henry estará nos esperando... Sabe quem é ele, não? Um dos membros da gangue lá na Europa – limpei minha boca com o guardanapo. – Mas Henry e os amiguinhos são gentis e irão nos ceder o apartamento deles por um tempo... – Mia deu um meio sorriso e abaixou o olhar. – Como eu disse... Pensei em tudo! – ela sorriu e olhou para mim novamente.
- Estou louca para conhecer a Alemanha... – adquiriu um ar sonhador. Apenas concordei balançando a cabeça positivamente. – Sabe, é mesmo incrível que nós estejamos conseguindo ir. Lembra quando tudo não passava de desabafos por Mensagens Privadas? – sorriu revirando os olhos. – O legal é que estamos fugindo, eu precisava dessa adrenalina, dessa sensação de perigo... Tudo fica mais emocionante e divertido, não concorda? – suspirou, largando-se sobre a cadeira.
- E como concordo! – olhei para ela com um sorriso comemorativo, mas logo fiquei séria, talvez confusa e curiosa. – Como será que nossos pais reagirão? Quero dizer, nós vamos fugir, somos menores de idade e em alguma hora perceberão que não voltaremos! Eu queria poder ver a cara deles...
- Não, por favor! Não vamos falar neles... Eu acho que meus pais nem vão se importar, acho que eles nem vão perceber que eu sumi. Afinal, já estou aqui em Brasília e eles nem deram por minha falta lá em Rondônia... Claro que eles não perceberam! – minha querida amiga havia lido meus pensamentos. – Eles nem me ligaram ainda. – Revirou os olhos – Isso não é relevante. Nós vamos para a Alemanha, fugidas, concordo... Mas vamos. E lá teremos uma nova vida, muito melhor, te garanto. – disse segurando minhas mãos. Não pude deixar de sorrir.
- Bem, provavelmente meus pais sentirão minha falta só porque não terão a trouxa aqui para fazer as coisas para eles. Enfim... – dei de ombros, conformada. Balancei a cabeça, afastando-os de meus pensamentos. – Estou tão feliz que realizaremos nosso sonho juntas! – quase soltei um gritinho, mas controlei-me.
- Eu também... Muito! – Mia deixou escapar um grito agudo. – O bom é que seu alemão melhorou bastante depois daquele cursinho que você fez... Não teremos tantos problemas – deu uma piscadela e eu ri.
- Hmpf... Não teremos tantos problemas porque você aprendeu alemão com seus avós! Isso fará diferença! – brinquei – Ah, eu seria mais útil com o meu inglês. – fiz bico – Mas como iremos para a Alemanha, fazer o que? – rimos.
- É verdade... Pelo menos uma de nós tem o alemão fluente! – mostrou-me a língua de maneira infantil, depois cruzou os braços, se recostando na cadeira. – Ah, o que foi?! Quer mudar o roteiro? – arqueou uma das sobrancelhas – Aí eu teria problemas... Meu inglês não é muito bom... Então vamos continuar com a Alemanha! – sorriu brincalhona.
- Eu queria que na Alemanha se falasse inglês, só! – brinquei sorrindo. – Não poderíamos mudar o roteiro, nossos corações sempre estarão, lá...
- O que é isso! A língua alemã é tão bonita! – Mia gesticulava animada. – Nossos corações estão lá... Boa frase! – seus olhos se apertaram, pensativa. – E estão mesmo... Mais precisamente, em Hamburgo. Pena que nós vamos para Berlim... Mas não importa, né? – perguntou com a voz meio chorosa.
- Não tem muita importância, porque será apenas por um tempo... Até conseguirmos dinheiro e tudo mais... – falei mexendo em meu colar. – Em Berlim teremos mais ajuda do nosso pessoal, você sabe. Será uma questão de tempo até nos mudarmos.
- Nosso pessoal... Gente super gentil e correta... – gargalhamos juntas, com certa ironia.
Admito que não possuímos o círculo de amizade que os pais normalmente querem para seus filhos, mas são o tipo de amizade que nos convém. Sinceramente, até que são agradáveis com a gente. São unidos e prestativos. Assim que contei sobre nosso plano de fuga, se prontificaram a nos ajudar. Contataram membros da gangue não só na Alemanha como em outros países da Europa se caso precisarmos. Também providenciaram identidade e passaporte. São falsos, certo, mas nos levarão aonde queremos. Achei até engraçado quando Renato, um de nossos amigos, falou que já éramos da família. Embora estivessem envolvidos até o pescoço com coisas ruins, todos sempre foram muito gentis comigo e com Mia, pelo menos. Espero que continuem assim.
Pedi a conta e falei para Mia dar o número do quarto que estava, no final da tarde, pagaríamos tudo de uma vez. Feito isso, levantei-me e abracei minha amiga. Apertei tanto o pescoço dela como se não fossemos mais nos ver. Esperei tanto tempo para finalmente conhecê-la que é tão ruim ter que se afastar... Mesmo que seja por poucas horas. Mas, ao mesmo tempo, tudo bem, ficamos tanto tempo atrás de telas de computador que horas tornam-se fácil de suportar. Mesmo que esteja ansiosa, tudo passará bem rápido.
Saí do hotel, ainda vestida com o uniforme do colégio e com a bolsa cheia de livros e cadernos. Meus pais acham que fiquei até mais tarde no colégio para fazer um trabalho e que o pai de Beatriz, minha amiga, me daria uma carona de volta para casa. Na verdade, fui junto com Renato buscar Mia no aeroporto. Depois nosso amigo nos deixou aqui. Não seriam mais de duas quadras a caminhar, então fui para casa a pé mesmo. Com meus fones no ouvido, segui meu caminho cantando músicas do Tokio Hotel. Sabe, apenas aquecendo meu alemão.

Após o almoço voltei para o meu quarto, na intenção de arrumar algumas últimas coisas e pensar na loucura que estava prestes a realizar.
Há mais de um ano, Clara e eu estávamos pensando em deixar nossas cidades de origem... E agora, estar aqui organizando essa viagem sem volta... Inacreditável. E à medida que minha percepção de que só teria mais umas poucas horas até o momento de partir ia crescendo, mais nervosa eu ficava.
Mas em nenhum momento eu fraquejei. Meu nervosismo é pura ansiedade... Só de pensar que eu estava deixando minha vida toda para trás, em busca de um sonho maluco e com uma amiga mais maluca ainda, já ficava totalmente extasiada.
Lembro-me de tudo que eu passei na minha casa, com familiares que não davam a mínima para mim do mesmo jeito que eu não dava a mínima para eles; foi assim que eu cresci, num lar sem amor... Apenas minha mãe era importante para mim. Entretanto, até ela me magoou profundamente.
Parece até que foi ontem, eu ainda consigo sentir toda a dor daqueles dias, toda a agonia...
Sentei lentamente na cama, enquanto meus olhos tornavam-se dolorosamente vidrados. Era esse meu jeito de chorar.
Se tudo tivesse sido diferente, talvez eu não estivesse aqui em Brasília, prestes a fugir para a Alemanha tentando buscar minha felicidade dessa maneira. Apesar de que... Se tudo tivesse sido diferente, mesmo assim eu iria para a Alemanha... O que mudaria, na verdade, seria o jeito que eu faria isso.
Parece até bobagem, um capricho de adolescentes, mas o que Clara e eu sofremos foi o bastante para aprofundar nossas crenças de que nossa felicidade só seria encontrada num país bem distante do nosso. Foi simplesmente “a gota d’água”. E é por isso que estamos indo, legalmente, porém com identidades falsas – devido aos nossos 17 anos, ou seja, menoridade – para a terra da cerveja e das salsichas... Algo engraçado, se levar em conta que eu não bebo álcool e sou quase vegetariana.
Há mais de um ano, nossa banda favorita pisou no nosso país, e por mais que nós tivéssemos tentado ir a qualquer custo, isso nos foi negado. Enquanto muitas fãs puderam realizar esse sonho, nós fazíamos parte da massa frustrada de admiradores que não puderam. A grande, e talvez crucial, diferença, consistia no fato de que Clara e eu somos completamente loucas, e não medimos consequências na hora de tentar tapar esse buraco causado pela ferida de um sonho não realizado.
Quantas lágrimas eu derramei naqueles dias, só meu travesseiro, minha alma e minha melhor amiga sabem. Fiquei completamente destruída, era como se todo meu ser houvesse sido quebrado em milhões de pedacinhos... E eu não acho que estejamos indo longe demais, principalmente se levarmos em conta que as coisas não se resumem ao fato de não termos ido ao show; esse sonho era maior... Era maior que isso, era mais profundo que isso. Não conseguir ir ao show foi simplesmente o cume.
Certa vez vi em algum lugar de que quando temos um sonho, devemos atravessar todos os obstáculos; tudo que nos impeça de chegar onde queremos deve ser destruído. Nós vamos com esse plano até o fim, não importa o que aconteça.
Essa ideia maluca que nossas mentes projetaram naqueles momentos em que sofríamos sobremaneira, será levada até a última consequência. E para a minha casa, minha antiga vida, eu não desejo voltar jamais.