Capa: Nome: Esquecer Ela
Autor: Susi
Classificação: PG+16
Beta-Reader: editor de textos
Nº de capítulos: 5
Terminada ou não: sim
Sinopse: “Para que seu coração sobrevivesse, ele teve de apagar a própria mente”
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Capítulo 1 - Acordar
A primeira coisa que senti assim que voltei a ter consciência foi o tubo com gosto de plástico na boca. Através deste tubo, um jato constante de oxigênio era jogado pra dentro de mim, o que, imaginei, me ajudava a respirar.
Respirar, aliás, nunca havia doído tanto. Parecia que um bloco de concreto estava no meu peito, esmagando as minhas costelas, e a cada vez que tentava engolir ar, uma dor pulsante rasgava meus nervos.
Não sentia as pontas dos dedos, e tive uma dificuldade imensa para conseguir fazer um movimento mínimo. Meus olhos estavam pastosos, como se uma cola gosmenta tivesse colado meus cílios, me impedindo de abrir os olhos. Eu sabia que era iluminado por luz artificial, que algum aparelho fazia bip junto com as batidas regulares do meu coração, e que minha cabeça estava enfaixada. Ao tentar mover a perna direita, senti que algo a imobilizava, e a suspendia.
Beleza. Não estou paraplégico, primeira notícia boa. Alguém percebeu que eu havia acordado, e senti sua presença. Devia estar gritando, mas a voz soava distante demais. Falava algo como
Georg, ah graças a Deus, vou chamar o médico... Médico. Hospital. Tubo de plástico.
Estava numa cama de hospital, possivelmente ferrado. Pelo menos o bastante para receber oxigênio de uma máquina.
Nessas horas, o último fragmento de autocontrole tenta nos enviar uma mensagem que está tudo bem, que basta ficar calmo. Mas aí, a agonia e o desespero surgem lá do fundo, e vão emergindo cada vez mais rápido. Você tenta abrir os olhos, mas não consegue. Tenta movimentar o braço para que sua mão arranque a maldita cola dos olhos, mas tudo o que consegue é dar um tapa involuntário na própria cara. Você tenta gritar, e nota que sua garganta está tão seca, que não se lembra nem de como falar. A dor aumenta 483% enquanto se contorce.
483.
Zimmer. Magdemburgo, olhos verdes, escola, Black Questionmark, Devilish, plateia de bar, gravadora, CD, shows, pessoas, gritos, Hotel em Tóquio, baixo, entrevistas, arenas, pavilhões, aviões, premiações, lugares, flashes, muitos flashes, e...
Tom.
Bill.
Gustav.
E eu.
Eu sou Georg Moritz Hagen Listing.
Ainda tento absorver o choque quando o médico chega. Minutos antes, havia acordado sem memória alguma, e de repente, meu cérebro termina de reiniciar, me jogando todas as informações de uma vez. Está tudo embaralhado e envolto numa névoa. Mas está tudo ali.
Enquanto retiram a cola dos meus olhos, enquanto reconheço a voz de Gustav ao fundo falando no celular, tento me lembrar da minha última memória.
Qual é a mais remota lembrança que você tem?, me perguntaram numa entrevista uma vez.
Eu sempre soube responder àquilo.
Eu tinha dois anos, e estava no gramado da vovó, e centenas de peças Lego a minha volta, cintilando no sol.
Mas se me perguntassem qual era minha última lembrança, eu não saberia responder.
Quando a visão retorna, tudo está tão embaçado como dentro da minha cabeça. Pisco dezenas de vezes, enquanto o médico pergunta se a pomada ainda estava incomodando.
- Ahá! - Respondo, sem reconhecer a própria voz.
Recebo um jato d'água na garganta, para meu extremo alívio. Agora, meu copo todo grita de dor – de diferentes intensidades, e mesmo assim única – e paro de piscar quando tudo está mais claro.
- Saudações da terra, Listing! - O médico era jovem, e simpático.
Gustav vem ao meu lado, e vejo que por trás de seus óculos, seus olhos brilham, marejados. Uno as sobrancelhas sem entender, mesmo recebendo uma fisgada no rosto.
-
Que ho... rrrrr....- Não tente falar, ainda vai precisar do oxigênio até o fim da semana, inalou muita fumaça, rapaz. Meu nome é doutor Ekströn Frings, responsável por mantê-lo no mundo dos vivos.
Inalei fumaça?- Vou te explicar as partes técnicas e chatas. - Ele lançou um olhar gélido para Gustav.
- Já liguei para a família, chegam em minutos. - Ele disparou. Evitava os meus olhos.
- Tudo bem. Ok senhor Listing, lá vai: estava em coma induzido há três semanas.
Ele esperou pacientemente eu absorver o choque. Gustav pegou minha mão esquerda, enfaixada por uma grossa camada de atadura.
- Deve estar se perguntando o porque. O mais grave de tudo foi a desaceleração, que lhe causou uma concusão cerebral séria. Fizemos algumas tomografias quando chegou, e tememos que... possa ter afetado algumas facetas de sua memória. Claro, vamos fazer testes de Amnésia retrógrada e anterógrada...
-
Sssssei... qwn ssssoou.- Ora, mas... é excelente saber que pelo menos não se assustou quanto lhe chamei de Listing! - Ele soltou uma breve gargalhada. - Durante seu tratamento, vamos investigar melhor. Bem, você... também inalou fumaça o bastante para causar queimaduras de primeiro grau no pulmão. Respirou brasas acesas. Dói respirar?
Confirmei com a cabeça, gostando cada vez menos da conversa.
- Isso é normal, ok? Sua voz vai ficar danificada por um tempo, mas pelo menos não estamos falando do vocalista! - Ele voltou a rir. - Agora, vou fazer uns pequenos testes de rotina.
Ele examinou minhas pupilas com uma lanterna, e concluiu o exame com um “muito bom”. Depois, foi até a ponta da cama, na minha frente.
- Esta sua perna que está erguida sofreu esmagamento. Se não a sentir pelos próximos dias, não se desespere, ainda temos duas cirurgias pela frente para extrair as lascas de ossos que restaram. - Ele tocou na ponta do meu dedão, a única parte da perna toda que não estava imobilizada – consegue sentir?
Confirmei com a cabeça. Ekströn e Gustav comemoravam.
- Pode mover?
-
Nnn...- Ufa! O pessoal finalmente imobilizou bem um paciente!
Fiz um esforço para sorrir com a piada. Ele pegou minha mão direita, apalpando cada parte dos meus dedos.
- Sente?
Fiz que não com a cabeça.
- Está adormecido, não é?... Isso é normal, efeito dos antibióticos que está tomando.
Ele foi até a minha prancheta de prognóstico, rabiscando. Olhei para Gustav, intrigado, e ele deu duas batidinhas na minha mão, a expressão de compreensão e dor estampada no rosto.
Bem, senhor Listing, a julgar pelo que passou, está excelente, e vejo que fiz um bom trabalho. Sua família logo vai chegar, e volto em meia hora, para repetirmos os exames de rotina. Pode ficar descansado, o pior já passou.
O médico saiu, enquanto Gustav ia até a janela, abrindo dois filetes da persiana. Deu um longo suspiro.
- Sua família chegou. Vai ficar tudo bem agora, falou? Aguenta firme, Hagen.
Ele saiu do quarto antes que eu pensasse numa pergunta. Dois minutos depois, vi minha mãe entrar no quarto, já em prantos.
Eu só queria perguntar duas coisas.
O que estava acontecendo, e porque eu estava ali.
Capítulo 2 - Chorar
Em certo momento, eu havia entrado em um sonho. Na verdade, era um sonho tão real, que desconfiava que fosse uma lembrança, mas não podia ter certeza.
Na lembrança/sonho, eu estou na cama do meu quarto, e alguém abriu as cortinas, deixando toda a luz do quarto entrar – exatamente como eu odiava que fizessem pela manhã. Escutei um riso, e vi uma silhueta feminina andar até mim contra a luz. Captei um rosto bem próximo ao meu – traços finos, leves sardas ao redor do nariz, cabelos castanho-claros e ondulados, olhos divertidos e tão azuis quanto o céu. A boca rosada ria, e uma mão de fada tocava meu rosto com uma delicadeza de arrepiar.
- Quem é você?, perguntei no sonho.
Ela estava prestes a responder. Mas de repente, seu rosto se contorceu de dor, e ela soltou um grito tão alto, tão angustiado, que acordei.
Apavorado, suando litros e agarrando as bordas do lençol, percebi que o grito vinha do quarto da frente. Pela porta aberta do meu, eu via uma movimentação constante de enfermeiras e médicos. Pessoas que se afastaram para chorar, parecendo não suportar a cena. Uma senhora foi retirada do quarto por dois enfermeiros, ela ainda gemia, cerrando os dentes com uma angústia assustadora.
De dentro do quarto, Gustav saiu, e foi até meu. Ele bateu a porta com força, e ficou por minutos ainda segurando a maçaneta. Aos poucos, ele foi desabando, e as lágrimas silenciosas deram lugar ao mesmo choro descontrolado da senhora do corredor.
- Gus! - Consegui dizer.
Ele ficou lívido, como se tivesse sido atingido por um raio. Mas aos poucos, sua expressão de dor voltou, e ele foi correndo até mim. Me deu um abraço forte, e deixei a dor que sentia pelo ato em segundo plano – eu queria entender o que estava acontecendo. Queria saber porque meus pais estavam se esquivando das minhas perguntas quando estiveram aqui, e...
Quando eles tinham vindo mesmo?
Porque diabos eu estava naquele hospital?!- Gus... - ele voltou a ter outro ataque de choro.
Só depois de meia hora fui solto. Era ele olhar para os meus olhos que mais cinco rios lacrimosos saíam dos olhos dele.
- Gus?
- S-sinto muito. - Ele respondeu imediatamente.
No segundo seguinte, até mesmo o oxigênio que mantinha meus pulmões funcionando estava irrespirável.
-
Q fo....i...?- Ela estava lutando, Georg. Eu juro.
- Hã?
- Ela, ela...
Ele levantou os ombros, e tirou os óculos para secar os olhos com a manga da camisa.
- Morreu – sua voz foi como um sussurro fúnebre.
Ficamos em absoluto silêncio, enquanto ele soluçava baixinho. Levando meus olhos para todas as direções, tentava organizar um pensamento, mas estava tudo misturado, e o esforço me fazia ter dores de cabeça e náuseas.
O doutor Frings abriu a porta, mas desta vez não havia sorriso. Ele deu um longo suspiro, e apoiou uma das mãos no ombro de Gustav.
- Porque não vai lá fora tomar um café? Precisa de tempo, rapaz. Todo mundo sempre precisa nestas horas.
- Tá – ele fungou o nariz, e saiu sem me olhar.
Em silêncio, o doutor Frings mediu minha pulsação, verificou minha retina, e atualizou meu prognóstico com os resultados de exames que havia trago.
- Quem...
morr...? - Perguntei, ainda com a voz arranhada.
Ele me olhou, surpreso.
- E a cabeça, Listing? - Perguntou, fugindo da resposta.
- Dor...
naúss...asss...- Náuseas?
-Ahá.
- Não é um bom sinal. Vou pedir uma tomografia agora, e já...
Segurei em seu pulso antes que ele escapasse.
- Quem? - O olhei nos olhos, sem medo.
- Listing, é... quer ouvir mesmo de mim?
-
Fa...laa.
- A Gisela Georg, ela... o impacto do caminhão foi mais nela que em você. Ela suportou bravamente tudo o que pôde, mas a dor estava intensa demais, não tinha dose de morfina que ajudasse. Sinto muito. Mas a Gisela faleceu.
Ele ficou lá, esperando que eu esboçasse alguma reação além da mudeza. Então, apertou minha mão direita e me pediu força, enquanto ia preparar a sala de tomografia.
Meus pais tinham voltado à noite, e descobri que havia ficado dormindo por dois dias desde sua última visita, o que do ponto de vista médico era preocupante. Minha mãe ficou todo o tempo segurando minha mão, e vi que seus olhos estavam cansados e muito tristes. Minutos depois, Bill e Tom apareceram, se desculpando pela demora.
Tom puxou uma cadeira, e ficou o tempo todo me cuidando, enquanto minha mãe foi levada pelo meu padrasto para jantar, nem que fosse à força.
- Olhos
verm...oss – disse para Tom.
- Pois é. Você sabe que eu não sou de chorar, mas não deu.
Bill finalmente se desencostou da parede, ficando bem próximo.
- Pode ter certeza, Georg, está tudo bem lá fora. Não teve jeito de esconder tudo da mídia, mas... você tem o tempo que precisar pra se recuperar. Estamos contigo.
-
Vleu.
- Eu sei que é uma pergunta bem idiota, mas como está se sentindo?
-
Nestsi...addo.
- Como?
-
Anests...ado.
- Entendi. Anestesiado. É estranho, né? Mas olhe, chore quando quiser, nós estamos aqui pra chorar junto.
- Tá. Eu quer... foto dela.
Os gêmeos trocaram um olhar rápido. Tom pegou o celular do bolso, e depois de alguns comandos, me estendeu a tela.
Como eu desconfiava, era a mesma garota do sonho. Na foto, nós estávamos num parque de diversões, com a montanha-russa bem atrás de nós. Estávamos de braços esticados e inclinados, como se pudéssemos voar. O vento brincava com o cabelo solto dela, e uma longa mecha cobria parcialmente seus olhos, e mesmo assim era possível ver o azul. O sorriso era aberto e infantil, e eu parecia imensamente feliz.
Pena que não me lembrasse daquele dia. Nem mesmo dela.
Continuei olhando a foto sem piscar, até que a imagem foi se aproximando de mim, e toda minha atenção foi absorvida nela. Meus olhos ardiam, e eu continuava ali, tentando encontrar qualquer vestígio de lembrança.
E minha mente só me respondia com uma palavra.
Nada.
A angústia passou a crescer aos poucos. Minhas primeiras lágrimas foram por não conseguir me lembrar, mas logo passavam a ser reais, e ardiam, como se estivessem ácidas.
Dois minutos depois, afastei a tela de mim, e escondi o rosto nas mãos.
Naquela mesma madrugada, tive meu primeiro ataque convulsivo.
Capítulo 3 - Descobrir
Agora, não era só o doutor Frings que cuidava de mim, e sim uma equipe de neurologia. Me faziam todos os tipos de exames possíveis, enquanto ficavam pasmos ao ver a radiografia do meu cérebro. Bem no hipocampo – segundo me explicaram – um micro estilhaço de vidro havia entrado dentro do meu cérebro. Quando cheguei aqui, tinha um pedaço de vidro do tamanho de uma faca fincada na minha cabeça, e segundo pensaram, haviam retirado tudo.
Mas lá estava o micro estilhaço, invisível a olhou nu. A desaceleração no acidente causou inchaço na massa cinzenta, e as semanas de coma fizeram com que meu cérebro se protegesse da ameaça. Centenas de fibras começaram a crescer em volta do estilhaço, isolando-o do resto de cérebro. A estratégia de defesa do meu organismo me causava náuseas e tonturas, dores agudas na cabeça, que segundo os médicos, poderiam durar semanas – ou o resto da minha vida.
Por ter atingido o hipocampo e córtex, eu teria dois problemas a partir dali. Guardar novas informações, e me lembrar de coisas passadas.
Eu sentia que meu cérebro era uma folha em branco. As informações pairavam em cima dele, eu sabia que está tudo ali, só faltava organizar. Com o avanço dos dias, minha voz melhorou, mas as palavras continuavam desconexas, eu me esquecia facilmente de como formar uma frase, ou organizar objetos quando fazia os testes. Às vezes, trocava os nomes de quem ia me visitar, ou demorava um certo tempo para associar o nome a pessoa. Por duas vezes, esqueci o próprio nome.
Mas o problema maior era Gisela. Aos poucos, todos voltaram a falar dela, a comentar coisas que havíamos passado. Eu somente balançava a cabeça, mas ainda atônito por não conseguir me lembrar de absolutamente nada sobre ela, embora sua imagem perturbasse meus sonhos.
Uma semana depois da morte dela, aconteceu o enterro. Eu estava incapacitado de ir, mas permaneci o dia todo com uma foto dela nas mãos. Era uma linda garota de sorriso fácil e contagiante. Eu entendia
porque gostava dela, mas não assimilava o
como e
quando.
O doutor Frings para mim já era um amigo. Ele entrou no quarto com nosso jogo de xadrez de tabuleiro dobrável, e dispôs as peças na mesa ao lado.
- Brancas, certo?
- Pode começar desta vez.
- Que gentileza!
Ele ia movimentando as minhas peças de acordo com o que falava. Era nossa vigésima segunda partida, e mais uma vez eu ganhara. Antes de dar entrada no hospital, nunca havia jogado xadrez na vida, até achar uma revista velha sobre o assunto numa gaveta ao lado da cama. Passei um dia inteiro lendo, absorto em aprender as técnicas. O doutor Frings percebeu meu interesse sobre o assunto, me explicou que por ter perdido certas áreas do cérebro, outras seriam compensadas como a inteligência, e logo trouxe um jogo para nós. Ele jogava xadrez desde que se conhecia por gente, e ainda estava impressionado por perder tantas partidas de uma vez.
- Vigésima terceira? - Perguntei, enquanto ele recolocava as peças no lugar.
- Não! Deixe eu me recuperar de tantos
rounds perdidos primeiro, você deve ser o jogador iniciante mais excepcional da Alemanha!... Listing?
-
Rounds... algo tem... aqui dentro.
- Como?
- Boxe, e... ela – disse, apontando para a foto ao meu lado.
- É possível, me contaram que você a conheceu em seu treino semanal de boxe. Ela era a nova
sparring feminino, e mesmo assim quis tentar com você, que acabou levando uma surra de uma garota. Foi assim que conheceu Gisela.
- É...
- Como não pode se lembrar de nada dela, especificamente? Eu não consigo entender.
- Acho que é... o primeiro a perceber que não me lembro dela.
- Nada mesmo?
- Não.
- É uma lembrança bloqueada. - Ele concluiu.
- Como assim?
- Foi o assunto do meu doutorado, uma pesquisa que fiz. Existem certos casos no mundo de pessoas que estavam pensando concentradamente em algo antes de sofrerem um acidente no cérebro. Algumas destas não paravam mais de pensar naquele assunto, já outras... apresentam os mesmos sintomas que você. Seu cérebro bloqueou Gisela por completo.
- Mas porque... espe... especificamente ela?
- Segundo a teoria mais aceitável, isso ocorre porque seu último pensamento antes do acidente estava te... fazendo algum mal. Profundo o bastante para que seu organismo ao... ser reiniciado do acidente, se protegesse. Somando ao estilhaço que ficou aí dentro...
- Dá pra tirar?
- Não mais. A sua estrutura cerebral tomou conta dele, construindo uma muralha de tecidos fibrosos em volta. Possivelmente conforme os anos, ele vai ser absorvido, mas se tentarmos mexer agora, vamos irritar seus mecanismos de defesa, que vão reagir.
- Como reagir?
- Podem causar inchaço no cérebro, aumentar suas convulsões, te dar dores de cabeça terríveis, febre em um grau que poderia cozinhá-lo. Ou seja: vai te levar ao óbito.
- Porque ela me faria mal?
- Tentei conversar isso com seus amigos. Eles não quiseram me contar, e acho que é... melhor esperar você se recuperar melhor para saber.
Me incomodei instantaneamente com o comentário. Aquilo me leva a crer que todos à minha volta me escondiam algo sobre Gisela, não queriam me contar, e lá no fundo, se sentiam aliviados por eu não perguntar sobre ela.
No fim daquele mesmo dia, o doutor Frings e mais duas enfermeiras me ajudaram a ficar sentado na cama. Tiraram minha perna engessada da sustentação, e aos poucos a baixaram, para que a dor não fosse tão grande. A sensação de tontura me fez enjoar bastante, mas estava feliz de estar sentado. Ao final de meia hora, cada fibra do meu corpo doía, via tudo girar e estava molhado de suor pelo imenso esforço, mas já conseguia sustentação para ficar sentado sozinho. Já haviam me dado banho de leito, e eu tomava a sopa da noite, quando Bill, Tom e Gustav chegaram. Todos ainda vestiam preto, e traziam o luto estampado no rosto. A enfermeira saiu assim que eu terminei de comer.
- Hei, meu chapa! - Tom brincou comigo, me dando um leve tapa no braço – falamos com seu médico. Quer dizer que ficou sentado hoje?
Meia hora. Doeu.
- É ótimo saber que está se recuperando – Bill sorriu, enquanto tocava meu rosto com delicadeza, como se eu fosse quebrar.
- Como foi? - A pergunta os fez parar. - Muita gente? Mídia?
- Não teve como esconder. Quer dizer agora... - Gustav deu de ombros – o mundo sabe quem ela era. Muitas fãs compareceram, elas... te desejaram boa recuperação.
- Tem um caminhão de presentes te esperando quando voltar – Tom comentou. - Mas, eu comi os doces. Eles iam estragar, e seu médico não deixou eu trazer, então... né?
- Tudo bem. Você me paga.
- Se ferrou – Bill e Gustav disseram ao mesmo tempo.
- Venha cá – o chamei.
- Ah, não, não vai me dar um tapa, né?
- Claro!
- Vai nada!
Bill e Gustav o seguraram, trazendo até mim, mesmo sob protestos. Seria um pouco injusto, mas eu queria testar minha força. A nuca de Tom ficou vermelha, e ele soltou um grito tão alto, que uma enfermeira veio ver se estava tudo bem. Assim que ela saiu, caímos na gargalhada.
- Filho-da-mãe, tá bem fortinho já, né?! Porra, doeu!
- Desculpe, tinha que ver se ainda podia fazer isso!... olhem, eu... queria lhes contar uma coisa.
Os três ficaram ainda mais perto, e ao mesmo tempo, bem cautelosos.
- É sobre Gisela. Queria que soubessem que... bem, conversei hoje com o doutor bastante hoje... - parei de falar, e voltei a ter concentração – eu não... ainda não sei como, mas não me lembro de nada dela.
- Como? - Tom perguntou, um vinco se formando em sua testa.
- Nada mesmo?
- Não, Bill. Nada. O doutor disse que posso estar com uma... espécie de síndrome de memória bloqueada. O que acontece é que eu sei quem ela é, mas ao mesmo tempo, eu... não sei. Não lembro do que passamos juntos, nem mesmo nas fotos. Às vezes, acho que sonho com ela. É como se ela estivesse o tempo todo aqui dentro – apontei para o coração – mas na cabeça, não tem nada. É uma des... eu não conheço ela.
Os três se entreolharam, e Gustav soltou um longo suspiro.
- Porque demoraram tanto em vir me ver, Kaulitz? - Usei o sobrenome para os dois.
- Não demoramos. Estivemos aqui muitas vezes enquanto você estava desacordado. - Tom respondeu. Por um canto do olho, vi que Bill desviou o olhar para a janela atrás de si.
- Mas demoraram quando eu acordei.
- Estávamos ocupados.
- O que poderia ser mais importante? Eu em coma, a Gisela morrendo, e só o Gustav aqui, com essa mesma cara de angústia.
- Georg...
- Não, Bill. Já chega. Eu sei que não posso me lembrar e também sei que todo mundo está me escondendo alguma coisa. Falem, e agora.
- É melhor você se recuperar.
- Estou acordado, lúcido, e posso pensar. Só estou nesta cama por causa da perna que não me permite andar, e se pensarmos bem, tudo o que me disserem não vai afetar. Só vão ser informações novas, já que eu me esqueci de toda esta história. O que eu quero saber é porque eu sofri um acidente de carro tão sério. Sei que sou um bom motorista, dirijo com muita prudência, mas segundo o laudo, eu passei um sinal vermelho em alta velocidade, e um caminhão nos pegou em cheio. Que merda toda foi essa?
Fiquei impressionado por ter falado tanto sem errar. Quem sabe, lá no fundo eu já estivesse treinando aquilo sem perceber. Gustav se sentou no sofá, cobriu o rosto com as mãos, e começou a soluçar. Bill foi ao seu lado, e logo ficou tão abalado quanto ele, com os olhos afundando nas próprias lágrimas. Foi Tom quem puxou uma cadeira, segurou minha mão, e olhou tão fundo nos meus olhos que eu tinha certeza que ele podia enxergar minha alma. Nunca o vira tão sério.
- Eu quero que você seja forte.
- Eu vou ser.
- Vou te contar uma história. Uma história que tinha tudo pra ser maravilhosa, mas nada aconteceu como prevíamos. Tudo só nos leva a crer que... você se esqueceu de mais uma pessoa, que também estava naquele carro.
A informação me pegou desprevenido, e senti que abria a boca involuntariamente.
- Que?
- O nome dele é Andreas. Era um dos nossos melhores amigos.
Quando ele começou a contar a história, Gustav havia voltado a chorar compulsivamente.
Capítulo 4 - Revelar
- Nós conhecemos Andreas desde os tempos de escola, desde que a banda era só um sonho bem louco e distante. Ele sofreu como a gente, passamos por muita coisa juntos. Mas sabe, quando formamos a banda queríamos que ele estivesse junto, mas só conseguimos assinar o contrato para quatro. Eram as condições que a gravadora nos deu, e a decisão final ficou entre ele e você, e ele acabou ficando de fora.
“O tempo passou, mas a gente continuou tendo contato. Ele nunca traiu nossa confiança, sempre mantinha segredo sobre nossa vida pessoal, nos ajudou muito com divulgação na internet quando lançamos o primeiro single. O tempo foi passando, fomos ficando famosos, fazendo os primeiros shows internacionais, e ele ficou na Alemanha, terminou o colegial, entrou na faculdade, a vida continuou. O que a gente não sabia, nem tinha como prever, é que lá no fundo, ele nutria uma inveja muito grande de você. Afinal, você foi quem ficou com o lugar que ele julgava ser dele na banda, mas nunca demonstrou um milímetro sequer do que sentia. Pelo contrário!
“Então, a Gisela entrou na sua vida. Eu me lembro de como você a descreveu enquanto estava com um saco de gelo na cara, estava apaixonado desde o primeiro soco que levara dela! Claro, como gostava de boxe, não era como as outras garotas, na verdade era osso duro de roer, você teve de insistir muito para conseguir sair com ela, ter a confiança dela... pedir ela em namoro. Daí, tudo ia bem na sua vida: era baixista numa banda famosa, tinha encontrado a garota dos seus sonhos... só uma pessoa não aprovava nada disso.
“Foi a forma que Andreas achou de te atingir. A gente entrou em turnê com a Humanoid City Tour, vocês ligavam um pro outro todos os dias, mas não tinham mais o contato de sempre. Você nunca pediu para que ela nos seguisse, a Gisela tinha a vida dela aqui na Alemanha, vida que tinha construído sem conhecer você, coisa que você nunca pediu pra ela abdicar. Mas além dela, o Andreas também ficou na Alemanha. Ele a via quase todos os dias, a ajudava com as crianças no boxe, ia buscá-la na faculdade... se tornou o confidente dela.
“Até que Gisela acabou abrindo o coração dela para ele. Contou o quanto lá no fundo sentia medo da vida futura dela com você. E quando a mídia soubesse dela? E se tirassem uma foto? A vida dela seria aquele inferno, como o que estávamos passando com as francesas loucas que nos seguiam? Ela não queria preocupar você, mas ela tinha medo. Tinha medo de te perder.
“Foi quando o Andreas começou a envenená-la contra você. Ele vinha com umas histórias de que você ia para as boates de cada país, inventada coisas, aumentava outras... ela começou a ver uma nova face ruim de você, e tentou colocar as cartas na mesa. Mas o Andreas não permitiu. Em vez disso, ele a convidou para o plano dele: o plano de destruir você, e consequentemente, a banda. Eles começaram a ter um caso, e planejaram contar tudo para a mídia, acabando com a sua imagem junto. Só uma coisa deu errado no plano deles. Gustav descobriu tudo.
“Ele pegou os dois juntos atrás do estúdio de gravação, muitos meses depois que a tour tinha acabado. Você a amava de verdade, não percebia nada. Então, os dois correram para dentro do seu carro, e lá dentro... o Gustav não suportou e chamou você. E quando você viu, se sentiu tão ferido, tão destruído...
“Acabou fazendo o que ninguém pensava que fosse fazer. Você entrou no carro, pegou a direção, e saiu com os dois noite adentro, em alta velocidade. Gustav foi atrás de você no outro carro, enquanto tentava chamar a polícia... ele disse que dava pra escutar os gritos da Gisela pra você parar, mas você não escutou, então...
“Foi um pouco antes de pegar a auto-estrada. Um caminhão vinha no sinal verde, e você pensou que ia conseguir passar o sinal vermelho. Você e o caminhão passaram juntos, o impacto ficou todo na Gisela, vocês rodaram muitas vezes antes antes de bater na barreira de concreto, e o carro começou a pegar fogo. O Andreas e ela estavam presos, mas você conseguiu abrir a porta do motorista, e caiu na pista com um pedaço de vidro gigante fincado na cabeça. O Andreas ainda está vivo, foi levado pra capital, para o centro de queimaduras. Nós demoramos em estar aqui, porque a mãe dele implorou para que fôssemos lá. Ele queria se despedir antes de morrer, tentou falar, mas... ele está com 85% do corpo carbonizado, e os médicos oscilam de opinião. Ninguém sabe se ele vai viver.”
Mais de uma hora tinha se passado, de pois de eu descobrir a verdade. Ficamos naquele silêncio morto, e ao mesmo tempo ensurdecedor. Eu queria ter forças para chorar, mas não conseguia ter motivo para produzir lágrima alguma. Porque eu sabia que mesmo com o coração ferido, eu não podia sentir nada. Minha mente me protegia, não deixava que a dor fosse produzida. Eles foram embora quando o horário de visitas finalmente acabara, me deixando só com os meus demônios. O doutor Frings percebeu meu estado paralisante, e colocou sedativos no meu soro para que eu dormisse.
Eu lutei contra os efeitos do remédio, tentando pensar. Eu havia acabado de ter uma vida maravilhosa, e uma pessoa tinha tirado tudo de mim. Afinal de contas, eu acabei contribuindo com o objetivo de Andreas, só que num nível maior que ele pensara. Ele não havia destruído minha imagem, mas havia matado o antigo Georg, matado cada pedaço dele com uma traição tão louca, tão intensa, que ele nem mesmo existia mais dentro de mim.
Então, um último pensamento me veio à cabeça. Ao final das contas, Andreas não queria matar Gisela. Mas eu me conhecia bem o bastante para saber que tipo de reação eu teria caso fosse traído. Eu viraria um animal, e faria de tudo pra acabar com a minha dor.
Eu sabia que andar em alta velocidade, sem me importar com leis de trânsito, atrairia um acidente. Eu quase podia me ver jogando o carro com outro no lado em que ela estava. Porque eu preferia vê-la morta do que ser traído. Nem que eu tivesse de morrer pra fazer isso.
Eu sabia que tinha visto o caminhão. Eu sabia que não ia dar tempo, sabia que ia matar a nós três.
E foi o que eu fiz.
Eu matei Gisela, estava matando Andreas, mas antes deles, tinha matado a mim mesmo. Porque eu não ia conseguir conviver comigo, sendo alguém traído. Fiz o que fiz por puro caso pensado. Um plano rápido de se fazer, que tinha atingido seu objetivo.
Respirando alto, arranquei o soro de minhas veias, e os eletrodos que mediam minha pulsação. Recoloquei a perna quebrada de lado, e empurrei todo meu corpo para que voltasse a ficar sentado. Segundos depois, eu tocava os pés no chão, e mesmo com a dor tomando conta de minha consciência, fui me apoiando nas coisas, até chegar no banheiro.
Quando entrei nele, acendi a luz, e me vi no espelho. Meus olhos estavam injetados e vermelhos, havia cortes pelo meu rosto. Minha cabeça estava raspada e enfaixada, e gotas de suor brotavam da minha testa.
Vi o reflexo do doutor Frings atrás de mim, quando ele entrou no quarto. Voltei a me ver no espelho.
Ali estava o novo Georg. Um com a mente limpa a consciência inédita. Alguém que eu havia construído, desde sempre, alguém que sempre estivera ali, esperando até que eu precisasse dele. Sabia que jamais voltaria a ser o mesmo, que jamais ia voltar a ter as lembranças antigas, e que inconscientemente, tinha tido todo o cuidado de apagar o necessário para que eu fosse o que sou agora.
Sem mágoas, sem ressentimentos, sem raiva.
Uma vida novinha me esperava assim que eu saísse daquele hospital.
Quando o doutor Frings finalmente tocou em meu ombro, perdi a consciência, e desabei no chão frio do banheiro.
Capítulo 5 - Reconstruir
Cinco meses se passaram desde que eu saí do hospital. Ainda tinha de fazer fisioterapias, mas já podia andar sem o apoio das muletas. Algumas cicatrizes ficaram, mas no meu rosto, todas já tinham praticamente sumido. Meu cabelo crescia, e eu pretendia deixá-lo no tamanho de antes. As dores de cabeça voltavam sempre, mas segundo o meu mais novo amigo Ekströn Frings, meu anjo da guarda, eram consequências das últimas camadas de cicatrização do cérebro. Eu ainda tinha dificuldades de formar frases, e me esquecia de coisas simples, como o endereço de casa, e nunca saía sozinho. Em compensação, meu ouvido para música melhorou consideravelmente, e em duas semanas, vamos lançar nosso novo CD. Sei que boa parte da minha recuperação se deve ao fato de termos fãs incríveis, e li todas as cartas de apoio que me enviaram.
Naquele dia, Gustav havia me levado para sair um pouco do estúdio e ficar longe das idiotices do Tom. Tínhamos um objetivo em nosso passeio.
Primeiro, paramos numa floricultura, onde comprei dois buquês de flores. No caminho até nossa segunda parada, percebi o olhar triste e distante de Gustav.
- Obrigada – disse. Ele me olhou brevemente.
- Pelo que?
- Por não ter me escondido a verdade nem um minuto sequer. Você é meu amigo de verdade.
- Devia ter te contado de outra forma, não teria...
- Acredite. Você não teve culpa de nada.
Minha segunda parada foi até a casa dos pais de Andreas. Eles levaram um choque ao me ver, mas sorrindo, expliquei os motivos da minha visita, e eles me levaram até o jardim que ficava trás da casa.
Com a autorização deles, criamos um álibi no caso de Andreas. Um acidente quase fatal com uma fogueira num bosque, na mesma noite do meu acidente. Ele estava bêbado com amigos da faculdade, e quando se deram conta do que fizeram, chamaram uma ambulância.
Ele não saía mais de casa agora. Me disseram que sentia dores constantes e agudas sobre a pele, por mais que ela fosse raspadas. Um outro motivo dos Kaulitz terem demorado em me ver, é que tinham doado o próprio sangue para que Andreas ficasse vivo.
Era impossível de reconhecê-lo. Ele estava sentado num banco na sombra, e ainda usava uma máscara branca com gel que deixava seu rosto constantemente gelado, o que o impedia de sentir totalmente a dor. Nas poucas partes do corpo que deixava à mostra, podíamos ver cicatrizes quase vivas de tão vermelhas e recentes.
Vi pela abertura dos seus olhos que ele ficou paralisado ao me ver. Sorrindo, coloquei o buquê de flores na mesa à sua frente.
- Sei que ainda não pode se comunicar comigo. Eu só quero que saiba, que o que quer que tenha feito no passado, já foi esquecido. Eu não posso me lembrar de nada, Andreas. Mas também, não é um sinal de ter restabelecido amizade com você. Eu devia estar sentindo um ódio imenso, mas minha consciência me deixa em paz. Eu espero que com o tempo, a sua também o deixe. Estou torcendo por sua recuperação. E se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, deixei meu novo endereço com seus pais. Até algum dia. E que esse dia não possa haver ressentimento algum, nem da sua parte, nem da minha.
O deixei ali, olhando para mim, com seu silêncio que não dizia nada, mas ao mesmo tempo, tudo.
Nossa segunda parada foi no cemitério. Tinha adiado esse dia o máximo possível, mas agora não podia mais, e pedi a Gustav que me esperasse no carro. O túmulo de Gisela era numa colina, bem abaixo de um carvalho com belas folhas verdes. De longe, eu pude ver que já haviam velas, flores, e cartas deixadas por fãs. Todas a consideram como um anjo que pouco puderam conhecer, mas que sempre sentiriam uma imensa gratidão por ela ter me feito feliz, mesmo com o infeliz acidente.
E eu sabia que era verdade.
Ao lado do túmulo dela, tinha um espaço vazio. Havia comprado aquele espaço desde que saíra do hospital. Um dia, quando eu morresse por completo, queria descansar a eternidade ao seu lado.
Ajoelhado na frente do epitáfio, eu via seu nome, a data de nascimento e de morte, uma pequena foto. Em baixo desta, uma frase.
Amada filha. Amada professora. Amada mulher. Saudades eternas.
Não tinha chorado pela morte dela ainda. Nos últimos cinco meses, tinha recolhido tudo que era nosso, escutado todas as histórias, visto todos os vídeos e todas as fotos. Minha mente ainda se recusava me dar qualquer informação, mas todas as noites, nos meus sonhos, ela estava lá. Viva, sorrindo. Me amando.
No fim das contas, Gisela tinha sido uma vítima. Vítima de alguém que me odiava, e vítima do meu próprio orgulho. Quem sabe, se nunca tivéssemos nos encontrado, ela podia ter tido alguém melhor, eu poderia ter encontrado outra pessoa, ou ainda estar solteiro.
Ela ainda estaria viva, assim como o antigo Georg. Jamais teríamos de compartilhar aquela mesma data de morte. Mas também percebi que um dia ou outro, a vingança de Andreas chegaria. E esta vingança podia ter custado minha vida por completo.
Ainda ajoelhado, peguei uma folha de papel dobrado que trazia no bolso. Gustav havia me dado aquela folha quando ainda estava internado, e disse que era um recado de Gisela, a última coisa que ela tinha falado antes de morrer. Nunca havia aberto aquele papel, mas a hora era correta.
Ela disse que amava você, que nunca tinha deixado de amar. Disse que só voltou a sentir isso, quando depois do acidente, você tentou tirar ela do carro. Ela sabia que se você ficasse ali, ia morrer carbonizado, e pediu pra você sair, um último pedido. Você obedeceu, e ela morreu feliz por saber que você ia ficar bem. Ela só queria seu perdão no fim de tudo. Quando voltei a olhar a lápide, uma dor imensa tomou conta de mim. Senti os olhos molharem, mas não era o bastante para chorar. Dobrei o papel até que ficasse bem pequeno, e o enterrei na frente da lápide. O sol passava pelas folhas, batendo no meu rosto. Agora, só existiam o silêncio, o vento, os raios solares, uma lápide, e o novo Georg.
Eu queria viver da dor de tê-la perdido. Mas entendi que no fim das contas, Gisela não ia gostar nada disso.
- Eu perdoo você – disse, numa voz rouca.
Virei as costas sem olhar para trás, tendo certeza que o novo Georg além de ter uma vida nova, estaria sempre sozinho a partir dali. A dor que havia sentido tinha um nome: solidão.
Quando voltei para o carro, finalmente estava chorando.
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OBS: Como sempre tu chega com uma história de arrazar. Muitos conhecem seu trabalho, e sabem que você é das boas. Parabéns pela história Susi, ficou divina ^^